quinta-feira, 22 de maio de 2014

O país dos chapéus








O país dos chapéus
Rubem Alves

Vivia num país de céu cor de anil um rei que muito amava o seu povo. Queria que seu povo fosse feliz. Mas seu povo não era feliz. Não era feliz porque não era inteligente. A prova de que não era inteligente estava no fato de que aquele povo não sabia e não gostava de ler. O rei passava seus dias e noites pensando: "Que fazer para que meu povo seja inteligente?". E, como ele não sabia o que fazer para que seu povo ficasse inteligente, o rei ficou triste. 
Viviam naquele país dois espertalhões, por profissão chapeleiros. Ficaram sabendo das razões da tristeza do rei. E maquinaram um plano para ganhar dinheiro às custas da tristeza do rei. Dirigiram-se ao palácio e se anunciaram: "Fizemos doutoramentos, no exterior, sobre a arte de tornar o povo inteligente". O rei ficou felicíssimo. "Por favor, expliquem-me essa ciência." 
"Majestade, o que é que torna uma pessoa inteligente?" Com essa pergunta, os chapeleiros abriram um álbum de fotografias. "Veja essas fotografias. Estão aqui as pessoas mais inteligentes da história. Em primeiro lugar, Merlin, o maior dos magos. Note que ele tem um chapéu de feiticeiro na cabeça." Viraram a página e lá estavam as fotos dos doutores de Oxford e Harvard. Todos eles de chapéu na cabeça. 
"Veja agora", disseram eles ao virarem mais uma página, "o maior general de todos os tempos, Napoleão Bonaparte." Os chapeleiros perguntaram ao rei se ele sabia a razão pela qual Napoleão perdeu a batalha de Waterloo. "Um espião inglês infiltrado lhe roubou o chapéu", disse a dupla. "Sem chapéu, ele não pôde competir com o duque de Wellington, que usava chapéu. E veja agora os grandes gênios da humanidade: Sigmund Freud, Winston Churchill, Santos Dumont, todos com chapéus na cabeça. Os chapéus dão inteligência. Propomos, então, o programa nacional Chapéus Para Todos. Por pura coincidência, somos chapeleiros e teremos prazer em ajudá-lo na sua cruzada contra a burrice. Montaremos muitas fábricas de chapéus e muitas lojas de chapéus. Todos poderão usar chapéus desde que, é claro, o governo ofereça bolsas aos pobres deschapelados." 
O rei ficou entusiasmadíssimo e lançou a campanha democrática Chapéus Para Todos. Os outdoors se encheram de slogans. "É preciso usar chapéu para se ter um bom emprego." "Prepare-se para o mercado de trabalho: use um chapéu." "Garanta um futuro para o seu filho: dê-lhe um chapéu." 
Os pais, que queriam que seus filhos fossem inteligentes, faziam os maiores sacrifícios para lhes comprar chapéus. Havia festas para a "cerimônia de entrega dos chapéus". Perante um auditório lotado, anunciava-se o nome do jovem, o público explodia em palmas, ele se dirigia à mesa dos enchapeuzados e lá lhe era colocado um chapéu na cabeça. Os pais diziam, aliviados: "Cumprimos nossa missão. Nosso filho tem um chapéu. Seu futuro está garantido. Podemos morrer em paz". 
A indústria chapeleira progrediu. Até as cidades mais pobres anunciavam com orgulho: "Também temos uma fábrica de chapéus". 
Agências internacionais, sabedoras da campanha Chapéus Para Todos, trataram de medir os resultados dessa técnica pedagógica. Fizeram pesquisas para avaliar o efeito dos chapéus sobre os hábitos de leitura do povo. Mas o resultado da pesquisa foi desapontador. O número de chapéus na cabeça não era proporcional ao número de livros lidos. O rei ficou bravo. Mandou chamar os chapeleiros e pediu-lhes explicações. "Senhores, o povo continua burro. O povo não lê." 
Os espertalhões não se apertaram. "Majestade, é que ainda não entramos na segunda fase do programa. Um chapéu não basta. É apenas preliminar. Sobre o chapéu preliminar, as pessoas terão de usar um outro chapéu amarelo, um pós-chapéu." O rei acreditou. Tomou as providências para que todos pudessem ter pós-chapéus amarelos. Daí para a frente, quem só usava o chapéu preliminar não valia nada. Pra conseguir um emprego era necessário se apresentar usando os dois chapéus: o preliminar e o pós, amarelo. 
Mas nem assim o povo aprendeu a ler. O resultado das pesquisas internacionais continuou o mesmo: o povo continuava a não gostar de ler. Aí, os espertalhões explicaram ao rei que faltava o chapéu que realmente importava: o chapéu vermelho. Era preciso, então, usar o chapéu preliminar, sobre ele o pós amarelo e, sobre os dois, o pós vermelho. 
Aquele país ficou conhecido como o país dos chapéus. Todo mundo tinha chapéu, inclusive os pobres. Ainda não foram anunciados os resultados da última pesquisa internacional sobre os hábitos de leitura do povo no país dos enchapelados. Assim, ainda não se sabe sobre o efeito do chapéu pós vermelho na inteligência do povo. Mas uma coisa já é bem sabida: de todos, os mais inteligentes são os chapeleiros. 
PS - É o que eu penso da ideia de Universidade Para Todos. 


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/sinapse/sa2903200520.htm

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Crônica

Crônica do Ignácio Loyola, lembrando com carinho da Flipiri e da Íris, publicada hoje no Estado de São Paulo.

Copa e os tons de cinza do Brasil
Na minha idade, segui muitas Copas do mundo com entusiasmo e alegria, participando da corrente geral que tomava o País e nos fazia rir, nos fazia crer, nos fazia torcer. Não me lembro de 1954, mas de 1958 em diante, repórter geral, aderi ao entusiasmo que coloria e arrastava o Brasil de ponta a ponta na época da Copa. Meses de risos, otimismo, ironias, brincadeiras. Quase na véspera então, fosse onde fosse, as janelas se tornavam verde-amarelas, ruas e muros pintados, grafites por toda a parte, faixas imensas desciam do alto dos edifícios, bandeirinhas nos carros, banners por toda a parte. Havia apostas, farras nos bares, bons compositores criavam hinos louvatórios. Muita gente ainda canta "pra frente Brasil, salve a seleção". Ainda canta os "milhões em ação, salve a seleção". E são refrões de 40 anos atrás, quando havia ditadura. Onde está a música desta Copa? Até agora, ouvimos canção oficial da Fifa, chocha, tola, sem pegar nos nervos. Lembram-se das notícias mostrando o povo correndo para comprar televisores? O povo corria às lojas, era um tsunami. Os estoques se acabavam. Não vi nada até este momento, os televisores estão à espera de compradores.
Agora, é democracia, os jogos serão aqui, e o que vejo é um Brasil furioso, raivoso, irritado, desesperançado, arrasado, colérico, ressentido, zangado, magoado, amuado, com dentes cerrados. Não se fala nos jogos, nos adversários, não se aposta em quem vai ser campeão. A maior parte da estrutura está inacabada. Junte-se a isso uma epidemia de dengue e o ministro da Saúde desaparecido. Claro, aprendeu com Lula, não sei de nada, não vi nada, não ouvi nada. Melancolia. Concordo que os protestos deveriam ter sido sete anos atrás quando se decidiu que a Copa seria aqui, para glória de Lula Supremo, o rei sol. O povo não tem pão, saúde, educação? Que coma brioches, então! Vi pelos telejornais um fato meio ridículo. A discussão se vai ser feriado ou não nos dias de jogo. Há capitais e municípios querendo votar leis. Porque se for feriado, terá de ser por lei votada pelas Câmaras. Coisa de gente que parece não conhecer o Brasil, a história, o nosso povo. Acaso nas últimas copas alguém decretou feriado? Acaso alguém, nos dias de jogo, foi trabalhar? Algum caxias (neste caso não sei se devo escrever com C maiúsculo ou minúsculo. Socorro Pasquale Cipro Neto), algum puxa-saco, alguém brigado com a mulher foi ou vai trabalhar em dia de jogo? Alguém trabalha no carnaval? Vá, vá, vá, como dizia minha avó Branca, quando queria desdenhar de alguma coisa. Copa é igual carnaval, agente entrega a Deus.
Ou será que é um pouco cedo? A festa vai contagiar? Nunca uma seleção teve a obrigação de ganhar como agora. Que Santo Expedito e São Judas Tadeu, patronos das causas impossíveis, zelem por nós. Faltam alguns dias. Que tudo dê certo e que a gente ganhe o caneco, como se dizia antigamente. Mesmo sem o fervor, o entusiasmo, a loucura, a farra. O Brasil está cinzento, todo mundo estourando por dá cá aquela palha Brasil. Estamos iguais à Rússia e Ucrânia, dentes de fora.
Ocupei espaço com a desesperança e o abatimento, quando queria falar muito da Flipiri, a sexta festa Literária de Pirenópolis, em Goiás. Já firmada no calendário cultural. Ainda farei isso, porque muita coisa boa acontece lá, envolvendo toda a cidade, todas as escolas, todos os professores. Flipiri e a Jornada de Passo Fundo são exemplos de como essas semanas têm o pé na realidade e na necessidade de formar leitores. Eles envolvem alunos do Fundamental para cima. Em Pirenópolis, foram recebidos com alegria 60 escritores, contadores de histórias, músicos, dançarinos. Quero falar de íris Borges, sonhadora, idealista, pragmática, um "trator" que move céus e terras e realiza a Flipiri, ano a ano, com uma verba mínima de algumas poucas centenas de milhares de reais. Milagre, milagre, digo cada vez que vou lá e vejo o resultado.


quinta-feira, 1 de maio de 2014

Para reflexão









Um dia isto tinha que acontecer
Por Mia Couto

Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida. 
Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações. 
A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.
Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.
Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.
Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.
Foi então que os pais ficaram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.
São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.
São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!
A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas.
Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.
Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.
Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam.
Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável.
Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.
Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio.
Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós).
Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.
E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!
Novos e velhos, todos estamos à rasca.
Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles.
A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam.
Haverá mais triste prova do nosso falhanço?