quinta-feira, 24 de julho de 2014

Primeiro a magia da história, depois a magia do bê-a-bá






            
Rubem Alves


Se eu fosse ensinar a uma criança a arte da jardinagem,
não começaria com as lições das pás,
 enxadas e tesouras de podar.

Levá-la-ia a passear por parques e jardins, mostrar-lhe-ia flores
 e árvores, falaria sobre suas maravilhosas
simetrias e perfumes; levá-la-ia  a livrarias, para que ela visse,
nos livros de arte, jardins de outras partes do mundo.

Aí, seduzida pela beleza  dos jardins ,ela me pediria para
ensinar-lhe as lições das pás, enxadas e tesouras do poder.

Se eu fosse ensinar a uma criança a beleza da música,
não começaria com partituras, notas e pautas.

Ouviríamos juntos as melodias
mais gostosas e lhe contaria sobre
os instrumentos que fazem a música.

Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me pediria
 que lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas
 pretas escritas sobre cinco linhas.

Porque as bolinhas pretas e as cinco linhas são apenas
ferramentas  para a produção da beleza musical.

Se eu fosse ensinar a uma criança
a arte da leitura,  não começaria
com as letras e as sílabas.

Simplesmente leria as histórias mais fascinantes que a fariam
entrar no mundo encantado da fantasia.

Aí, então, com inveja dos meus  poderes mágicos, ela quereria que eu lhe ensinasse o segredo que  transforma letras e sílabas em histórias.

É assim. É muito simples.


quinta-feira, 10 de julho de 2014

PERDER, GANHAR, VIVER





Perder, ganhar, viver!

Carlos Drummond de Andrade (1982)
Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do presidente, que se preparava, como torcedor número um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo, inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas, flâmuIas e símbolos diversos do esperado e exigido título de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas…
Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica remoção de detritos: começar de novo.
Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos, apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um objeto roubado. A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou. Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.
Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas, readquirimos ou adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da moderação, do real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida. Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se. Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.
E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?









quarta-feira, 2 de julho de 2014

DESEJO DO CHEIRO DA CASA DA AVÓ:







DESEJO DO CHEIRO DA CASA DA AVÓ:

Roseana Murray

Tudo o que a avó fabrica
em sua cozinha encantada
tem cheiro bom:
bolo de chocolate, biscoito de nata,
sonhos embrulhados
em açúcar e canela,
que são como nuvens
no céu da boca e expulsam
qualquer pesadelo.
As mãos da avó,
cheias de farinha
e tempo acumulado,
acariciam, tocam na superfície
dos pães e da pele da gente
com tanto amor
que curam qualquer defeito
do lado esquerdo ou direito.
Na casa da avó
o ar é perfumado
e parece um abraço
e até o final dos tempos
o cheiro da casa da avó
fica grudado em nosso
pensamento.

in Poço dos Desejos, ed. Moderna