segunda-feira, 20 de abril de 2015

Maria Não-Sei-De-Quê



Chama-se Maria. Maria de quê? Não se sabe. Ela mesma não sabe muita coisa. Mas, sabe trabalhar. Todos os dias, levanta quando ainda está escuro. Toma um copo de garapa pra enganar o estômago.  Aos domingos (sua mãe sabe os dias da semana), toma um prato de mingau de farinha com leite que é pra dar sustança. Para ela, é tudo igual porque trabalha todos os dias.
O primeiro time de meninos e meninas desce correndo a ladeira e ganham a várzea para chegar ao sítio dos cajueiros.  São 5 horas da manhã. Em meia hora, a pé, chegam lá. E vão cantando:
Pé de caju, pé de moleque
Quem quiser chegar primeiro
Não pode pisar no breque
Cuidado, olhe bem pro chão
Pois debaixo dos cajueiros
Tem castanha de montão”
 
E é uma correria danada. É preciso catar todas as castanhas e levá-las para o galpão. Até o final do dia, o chão tem que estar limpo.
Mas, a Maria faz parte do segundo time.  O trabalho começa às duas da manhã e vai pela madrugada adentro. É a hora de arrumar as trempes, fazer o fogo e botar as castanhas pra torrar. Quando o tacho começa a pegar fogo, é só virar tudo, correndo, e sarrabulhar as castanhas na areia. Aí, é pra quem tem coragem: pegar as castanhas, ainda quente, queimando as mãos, quebrar a casca da castanha com um porrete e retirá-las, uma por uma. Pronto. Aí  estão  elas:  assadinhas.
Foto por Daniel Santini, da Repórter Brasil
Foto por Daniel Santini, da Repórter Brasil
A parte mais perigosa é lidar com o fogo. A fumaça, as labaredas e o calor torram as castanhas que serão descascadas. É preciso muita atenção porque as castanhas soltam um óleo inflamável e as chamas aumentam de repente.
Sempre consegue esconder algumas castanhas pra comer. Mas, se alguém pega, é castigo na certa. Contudo, vale a pena arriscar.
Seu corpo dói todo e só esquece  a dor quando começa  a escutar o som das pequenas batidas do porrete nas castanhas. Um som repetitivo que adormece a sua mente.
Às vezes fica pensando: será que o mundo é só isso? Será que todas as crianças são assim? Mas ninguém sabe a resposta. E Maria sonha. Com, quê? Ninguém sabe. Nem ela.
Outra madrugada: mais trabalho. Disseram que teriam que torrar mais castanhas, porque precisavam de um carregamento maior. E é aquele corre-corre: preparar as trempes, fazer o fogo, colocar as castanhas nos tachos, mexer, mexer…
- Depressa! Mais depressa!
A madrugada está escura; a lua se escondeu não se sabe onde.
Ela sempre fica olhando para aquelas labaredas e se sente dentro delas, esquecendo tudo. Naquela noite, as labaredas parecem convidá-la Começa a ver camaleões de todas as cores, enormes, a olhá-la com os olhos embriagados de prazer. O efeito fantasmagórico dos camaleões coloridos, envoltos em chamas, é algo que nunca imaginara existir.
- Vem, vem! Você vai ver como é bonito!
Maria se sente cada vez mais atraída por aquele fogo, aquela cor avermelhada. Sem conseguir dominar a atração irresistível, o chamamento mágico, Maria vai chegando mais perto, mais perto e, de repente… ela  está dançando sobre as castanhas: ela e os camaleões. Uma dança mágica. Os camaleões, num ritmo alucinante, retorcendo-se de pura alegria.  Ela, também embriagada de puro prazer, rodopia, rodopia, arrebatadamente, como num balé incandescente. O fogo louco, crescendo, querendo lamber o mundo.  Maria cantando a música ancestral do fogo.  As castanhas virando cinza…
 Mas a única coisa que importa é que Maria e os camaleões cantam a canção das chamas; dançam a dança do fogo.
globoesporte.globo.com
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Repórter Brasil / Elba GGomes

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