domingo, 14 de fevereiro de 2016

Histórias de Júlia - O internato






Nossas aulas começavam às 7h, embora tivéssemos que acordar às 5h para estarmos na capela às 6h e ali assistir à missa, toda falada em latim, e quase estourar os bofes de tanto cantar.
 A Madre Carolina, chamada de Madre Assistente, que era a superiora da congregação, dizia, em voz alta: “Cantem, cantem! Quem canta, reza sete vezes.” Somente após esse suplício matinal é que íamos para o refeitório tomar o café da manhã.
Apanhados os livros na sala de estudos, descíamos a longa escada (e aí já fazíamos nosso primeiro exercício físico matinal), caminhávamos por longos corredores (e tome silêncio) até uma escada de alvenaria que desembocava nas salas de aula. E eu não entendia como é que se descia uma escada e as salas ficavam no mesmo plano dos jardins.
Salas grandes, espaçosas, bem iluminadas e bem ventiladas, desfrutávamos de um certo conforto, ainda mais que podíamos “fugir” para os jardins.
- Número 83, você ouviu o que perguntei?
- Ah, ah... sim...
- Então responda: Qual é a flor que simboliza o Japão?
- Ah. O quê!!?
- Está sem lanche e sem banho, hoje.
Aterrissei.
- Ah, meu Deus, tô lascada. Vou comer pão com melado.
Mais tarde, pagaria caro por essa “fuga”, pois essa mesma pergunta caiu numa prova oral de Geografia.
Apesar desses incidentes, as aulas eram interessantes.
A Madre Fritzeheid era a nossa poliglota do internato. Falava fluentemente o alemão, o inglês, o francês e dominava o grego e o latim. Magra, alta, parecia um pendão de milho vestido de preto. Era muito severa e nem sabíamos o que era pior: se as intermináveis aulas com memorização de verbos e vocábulos, ou se os ditados que eram sorteados. Nunca pude me esquecer da prova final de francês quando foi sorteado o ditado "Le jardin"
"Nous allons quelquefois passé le samedi après midi dans un jardin public derrière la ville...
Foi terror ao vivo e em cores, pois aquele texto era considerado o mais difícil dentre todos. Em razão daquele bendito ponto sorteado, muitas alunas ficaram para "segunda chamada”; outras levaram "bomba" e, com certeza, jamais fizeram as pazes com o idioma francês. Por sorte, eu era excelente em línguas estrangeiras. As aulas de inglês, alemão e francês eram as minhas preferidas. Eu me identificava com aqueles idiomas e sempre conseguia as melhores notas, o que me dava um certo status, pois as freiras algumas vezes me dispensavam da sala de estudo para “ensinar” esses idiomas àquelas que estavam com nota baixa. Íamos para um pátio coberto que dava para o espaço multiesportivo. Estudávamos um pouco, mas sempre sobrava um tempinho para jogar um baralhinho (sueca). Além disso, eu tinha a possibilidade de negociar santinhos, picolés e outras sobremesas no “mercado negro”. Era uma situação por demais confortável.
 Meu terror mesmo sempre fora e continua sendo a Matemática. Antes de nos mudarmos para São José da Coroa Grande, em Bacurezinho, tínhamos aula de reforço e nossa professora fazia uso de uma palmatória bem grossa. Cada vez que errávamos uma conta, por exemplo, levávamos alguns “bolos” nas palmas das mãos que ficavam inchadas e vermelhas.
No internato, a coisa mais ou menos se repetia: a cada erro de tabuada ou de uma conta, a professora, que não por acaso, era  a Madre Carolina, apitava bem no meu ouvido. Aquilo ficava ressoando na minha cabeça. Então, eu misturava tudo: números, contas, problemas... Todos os anos ficava em segunda chamada por causa da Matemática. Pois a Madre Carolina era também nossa professora de Latim. Não poderia haver combinação pior, porque ela era tão temida que poucas alunas conseguiam aprender o Latim. Era um tal de se enrolar nas "declinações" e nas traduções " Se vis pacem para bellum." ( Se queres a paz, prepara-te para a guerra".)
Nossas aulas de Língua Portuguesa ficavam a cargo de uma professora brasileira, D. Maria, gorda, que nunca levantou a bunda da cadeira para explicar coisa alguma. Usávamos a Gramática Expositiva, uma espécie de código de todas as regras gramaticais da língua. Não me lembro de nenhuma delas. A única coisa que me ficou na memória foi o cacoete de D. Maria: de frente para nós, ela cruzava os braços; depois, retirava devagarinho o braço direito, passava-o pela axila esquerda e, a seguir, levava o braço até o nariz e dava uma fungadinha no cheiro que buscara na axila. Aquilo se repetia durante toda a aula.
A aula de latim era como torcer nosso cérebro porque nada daquilo fazia sentido para nós: declinações, rosa, rosa, rosae, rosae, rosa, rosam. O pior era ligar isso aos “casos”: nominativo, sujeito e predicativo do sujeito; vocativo, interpelação; genitivo, complemento do nome ou adjunto adnominal; dativo, objeto indireto; ablativo, adjunto adverbial; acusativo, objeto direto... E, para cada caso, uma terminação. E tome decoreba. O pior é que, anos depois, quando prestei meu primeiro vestibular (para Letras) tive que decorar as Catilinárias e os tempos verbais de não sei quantos verbos.
Maior gostosura mesmo eram as aulas de Arte. A professora, uma alemã muito prendada, ensinava desenho e pintura em aquarela. Também pintávamos em azulejo. Havia também trabalhos com recortes de desenhos pintados a nanquim. Eram horas agradáveis, em que a criatividade rolava solta.
         Sempre vinham freiras jovens da Alemanha. Elas eram muito diferentes de nós. Apesar de terem toda a cabeça coberta pelo véu preto, ainda assim era notável a diferença da cor da pele e dos olhos. Eram branquinhas, olhos azuis que variavam do mais forte ao mais fraquinho, as maçãs do rosto rosadas como manga-rosa. Não falavam nada de Português e, por isso, eram colocadas no meio das alunas para que aprendessem mais rapidamente o novo idioma. Nós, que éramos obrigadas a aprender alemão, em vez de melhorarmos o nosso aprendizado, ficávamos a ensinar àquelas estrangeiras algumas bobagens no nosso idioma. "Eu sou um papagaio" (Isso era uma grande bobagem para a época, já que nem sonhávamos em falar palavrões). Quando as freiras descobriam tudo, afastavam-nas de nós.
         Em frente ao refeitório, havia um pátio coberto onde ficavam pendurados todos os sacos de roupa suja das alunas internas. E aquilo era um dos mais terríveis segredos, guardados a sete chaves: o preço da lavadeira; porque quem já era "mocinha" pagava mais, pois não conhecíamos os higiênicos absorventes. Eu costumava fazer promessas para que as "maiores" não descobrissem que eu ainda era "criança". Pois, se isso acontecesse, meu prestígio diminuiria bastante. Já bastava a gozação porque eu ainda não usava sutien (diga-se hoje sutiã).
         E, assim, a vida corria absolutamente fora da realidade, cercada de cultura germânica por todos os lados, um pedaço da Alemanha no centro do brejo paraibano.